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- Olhei por cima do ombro e soube-o logo. Não íamos
conseguir. Empurrei meu pai e fui para o lado oposto, gritei o mais alto que
pude, “corre”, sabendo muito bem o resultado daquela ação. Só um teria
oportunidade de escapar.
O vento do bater de suas asas derrubou-me até sentir o sabor
da areia. Virei-me, certo de encontrar um fim horroroso, mas o que vi vai
assombrar-me os sonhos para o resto de minha vida. – O resto do hidromel
desaparece com um só trago e a caneca aterra violentamente sobre a mesa.
Estamos na taverna Telhado Torto, da posse de Imahir. Ali as
noites são longas e fervorosas. Onde o mais baixo dos homens pode esquecer quem
é e ter mais divertimento que um rei. No espeto havia sempre carne e a bom
preço, duas raridades sob quaisquer padrões de classe social. Todos sabiam de
onde vinha aquela carne, mas a maioria não se importava, podiam encher a
barriga como qualquer senhor e a cidade tolerava Imahir por manter as ruas
limpas dos ratos.
Sim, era um local de convívio frequentado por muitos, um bom
refúgio para o inverno com o crepitar de madeira.
O bardo local conhecido apenas como Lundin, que na língua
ancestral significava pássaro cantante, era frequentador assíduo do Telhado
Torto. Fazia da mente de cada um telas onde pintava retratos com as canções de bravura
de outrora, mas hoje mantinha-se em silêncio e dava lugar ao relato
extraordinário de um forasteiro de nome Gaff, que vivia na outra margem do rio
Plurul. Ele falava de um dragão que assolava aqueles lados e que dizimou a sua
aldeia pesqueira.
Muitos envolviam Gaff tanto maravilhados como inquietados,
outros respondiam só à reunião de corpos, dividindo a sua atenção com as
meretrizes que enganavam bem os olhos depois de algumas bebidas, suas experiencias
para conseguirem facilmente o resto.
- Eu só espero que tenha sido rápido. – Continuou Gaff. – Eu
escondi-me por detrás das rochas pretas na margem, enquanto ouvia… o quebrar do
que só podiam ser os ossos do… - Levou a mão á face como se conseguisse apagar
o que presenciou.
O silêncio no Telhado Torto era incomum e mesmo numa noite
destas havia sempre algum ruido de fundo. Quatro soldados, riam numa mesa das
traseiras e a palavra cobarde voou através da sala. Alguns começaram a
dispersar, enquanto outros permaneceram para assistir o desenrolar.
Numa taberna para as classes inferiores, tem de se criar uma
certa escama contra insultos e outras ofensas, senão haveria brigas todos os
dias. Por outro lado Gaff não aguentava desaforo de ninguém, ou pelo menos
vociferara sempre no passado. O seu era um temperamento quente, mas nessa noite
não encontrou nada em si para puxar a faca da cintura. Não era a opinião dos
outros, mas a sua que o destroçava.
Os soldados atravessavam aquele punhado de gente com Simo, à
frente, evitando as vigas de madeira baixas.
- Eu sou Simo, filho do Simian um dos cinquenta que fez
parte da comitiva que à dez anos matou o ultimo dragão deste lado do rio. Enoja-me
o facto de partilhar a mesma divisão com um cobarde. – Agarrou o pomo da espada
com firmeza.
Um idoso segura-lhe o braço e pede-lhe calma, afinal
tratava-se de um dragão e ninguém ali para além do soldado, tinha pensado tal
coisa.
Os dragões dominam os céus e lembram os homens muitas vezes
do seu lugar na terra. Alguns acreditam que os dragões são animais como outros
quaisquer. Predadores que caçam indiscriminadamente e nós só estamos abaixo da
cadeia alimentar. Outros acreditam que existe inteligência e malicia por detrás
dos seus atos. O nosso amigo bardo podiam entoar as canções dos muitos
imortalizados como Grimul o Horrendo ou Selta a Gananciosa protetora de
tesouros. Canções que davam razão a essa maneira de pensar. Para outros tantos
os dragões são até criaturas para idolatrar tanto quanto temer. Seja como for,
um dragão nunca é uma criatura a ignorar, não existem seres mais poderosos, só ultrapassados
em fascínio pela elusiva fénix e embora superados em tamanho pelas serpentes
marinhas dos mares nórdicos, diz-se que bem para leste alguns dragões até
dominavam a água invés do fogo. Os dragões são sem dúvida os reis de todos os
seres.
- Todos sabem que dragões só são mortos à traição, enquanto
dormem. – Lembrou Imahir por detrás do balcão.
- Desonras a memória de meu pai?! – Simon vê o seu
precipitado desembainhar de espada travado por seus colegas.
Não foi intenção de Imahir maldizer o bom nome de Simian, mas
o filho… prepotente, arrogante, vil… mal-amado naquelas paragens. Imahir tinha
desgosto de Simo nunca ter chateado o homem errado na estalagem que o calasse
de vez. Além de tudo não disse mentira nenhuma, seria loucura ir contra uma
criatura tão imponente de igual para igual. Segundo diz a lenda o único que
conseguiu enfrentar e matar um dragão acordado foi Fanhir Espada Longa, mas ninguém sabe bem
como.
- Uns destes dias Imahir filho de Imuhul… - Suas palavras
afogam-se.
Um guincho estridente gela depressa os ânimos no Telhado
Torto. Olhares prospetivos só encontram caras sem respostas.
- Aqui está a oportunidade de Simo, soldado sob o brasão da
águia de mostrar o seu valor. – Quebrou o silêncio Gaff, que se viu novamente o
centro das atenções. – Um rio não é barreira para um dragão.
Outro guincho e desta vez acompanhado também por gritos do
exterior. O caos instalou-se na estalagem e todos se apressaram para a saída.
Fogo e morte é tudo o que os esperava. O calor das labaredas
acolheu-os e uma enorme sombra ondulava pelos telhados e ruas. Muita gente a
correr, enquanto alguns presos aos já mortos no chão. A noite fez-se dia com um
vermelho de fogo e sangue. Olhos no céu e parecia impossível não ver tamanha
criatura, mas a destruição em redor era bem visível, ruína.
Soldados… é difícil correr para o perigo enquanto todas as
fibras do nosso corpo nos empurram na direção oposta. Diante do que pareceu o
fracasso irremediável, deram a retirada prematura só para ver o fogo servir-lhes
de cobertor. Entre as vítimas, Simo.
Levou mais tempo, mas a cidade caiu tal como a aldeia do
outro lado de Plurul.
Gaff mais uma vez escapou, fugiu o mais depressa que suas
pernas o permitiram, desta vez mergulhando na floresta invés das águas. Tinha
sobrevivido.
Coragem é um interesse curioso. Muitos falam nela e
acreditam a reconhecer quando surge, mas será que o sabem mesmo? Ao contrário
de covardia, o medo é uma coisa útil, já a idiotice muitas vezes é confundida
com coragem. Coragem debaixo de fogo é coragem feita de ocasião. Não julguem os
atos de uns sem saber a sua total extensão.
Os trilhos da floresta eram cheios por dúzias de pessoas
fugindo como podiam, já Gaff levava uma criança orfã nos braços. Foi o medo de
Gaff à três semanas que regeu sobre o fado desta criança perdida agora.
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